Quem são aqueles que encantam multidões
com uma das mais antigas formas de arte e entretenimento: o teatro de bonecos
Por Karine Klein e Jacqueline Santos
Produzir
as engrenagens que movimentam o país, que constroem ônibus e aviões. Ou viver indo
e vindo nesses aviões para vender esses mesmos ônibus pelo Brasil. Ambos podem
ser bons empregos. Mas, quando o trabalho começa a desgastar sua vida, a ponto
de você não conseguir acompanhar o crescimento do filho, ou o ambiente
profissional é desmotivante e pouco amigável, o que fazer? A maioria das
pessoas, apegadas – ou acomodadas – à estabilidade financeira, se manteria no
emprego, acumulando frustrações e estresse.
Mas um homem decidiu largar tudo para se sentir livre, mesmo se
arriscando a ficar sem dinheiro. E anos depois, convenceu uma mulher a se
aventurar pelo mesmo caminho.
A
rua íngreme de chão batido nem parece Gramado. Fica a muitas curvas do Centro e
de suas lojas de chocolate. Ao lado de uma floresta por onde o vento assovia
entre eucaliptos, há uma casa de madeira simples, com um Opala verde, de R$ 8
mil, na frente.
As cadelas Preta e Titânia fazem as vezes de campainha, latindo e também pedindo carinho. Nos fundos, estão espalhadas armações de ferro e bolas gigantes de isopor.
A cabeça bege e desbotada de um cavalo de gesso recepciona quem chega. Não fosse tudo colorido e impregnado de histórias, aquelas sobras dariam um ar de filme de terror ao pátio do casal que vive ali.
O Opala que leva Beth para todos os lugares |
As cadelas Preta e Titânia fazem as vezes de campainha, latindo e também pedindo carinho. Nos fundos, estão espalhadas armações de ferro e bolas gigantes de isopor.
Armações e sobras de cenários |
A cabeça bege e desbotada de um cavalo de gesso recepciona quem chega. Não fosse tudo colorido e impregnado de histórias, aquelas sobras dariam um ar de filme de terror ao pátio do casal que vive ali.
Recepcionando quem chega, o cavalo |
Lá
funciona a oficina de bonecos. Atrás, um depósito guarda tudo que um dia já foi
usado em cena. Personagens que conquistaram a aposentadoria, mas dos quais seria
impossível se desfazer. Eles têm alma. O espaço é pequeno e entulhado de
cenários, cartazes de espetáculos e títeres, criando uma mistura pouco
provável. Ali, abraçadinhos, estão o Pinóquio e o Coelhinho da Páscoa. Um
enorme gato da Alice no País das Maravilhas, com olhar sarcástico e enormes
dentes, está de frente, ameaçador, para uma rena do Papai Noel. Convivem – ao
que parece – em perfeita harmonia.
Abraçadinhos |
O olhar sarcástico do gato |
Sobre
a porta da oficina, a placa indica: Teatro de Bonecos do Grupo Só Rindo. É onde
trabalham os bonequeiros Nelson Haas, 42 anos, e sua mulher, Elisabeth Bado, 41
anos. A aparência despojada – cabelos castanhos longos e cacheados, abrigo de
tactel respingado de tinta branca e surradas alpargatas – diz muito sobre a
personalidade de Nelson, e também sobre quem o cerca atualmente, sejam amigos,
familiares ou visitantes desconhecidos. Não são pessoas superficiais e
materialistas a ponto de julgar alguém pelas roupas. Ele é um sujeito tranquilo
e dinâmico ao mesmo tempo, que deixa todo mundo à vontade. Ao seu lado, a
acolhedora Beth oferece chimarrão com uma voz mansa, de quem adquiriu calma
depois que teve muita pressa nessa vida.
Nelson explicando a posição do cenário no palco |
No
ateliê, o casal tem a ajuda dos aprendizes Igor Foss, 17 anos, e Barbhara
Brando, 19 anos. Igor é um adolescente de cabelos azuis, e também manipula as marionetes.
“O Igor diz que o teatro de bonecos mudou a vida dele”, entrega Nelson. “É
verdade. Eu era muito tímido, quase não falava, em público então... mas agora
não sou mais”, confirma o rapaz.
Na oficina, o processo de criação |
"Mario Netes" |
Além
dos títeres, os alunos são outra paixão do artista. Assim como o Igor e a
Barbhara, muitos outros procuram o casal para aprender esta arte. De 2005 a 2008, Nelson
ministrou aulas no projeto que criou “Bonequeiros Mirins”, na Fundação Cultural
de Canela - FCC. Chegaram a atender mais de 300 crianças em 6 escolas do
município. Porém, com o passar do tempo e o pouco investimento na área, ele
decidiu que seu trabalho de criação não poderia estar vinculado somente ao
local e resolveu montar seu próprio ateliê em casa.
Desenhos deixados pelos alunos de Nelson e Beth |
Sempre
atualizado sobre este meio, entre um cigarro de palha e outro, Haas conta que
já esteve reunido com o Ministro da Cultura há uns quatro anos, discutindo
ações que melhorem a vida dos artistas brasileiros de teatro de bonecos.
Constantemente em busca de firmar novas parcerias, ele afirma: “Vivemos numa
ditadura cultural, a burocracia é o câncer do país”. Nelson fala com o
conhecimento de uma pessoa que viajou o mundo com seus bonecos, conheceu a
cultura e o processo de criação de vários lugares e ainda assim se surpreende
que os editais de cultura de grandes patrocinadores só beneficiem uma pequena
parcela dos que vivem de arte. Ele fala ainda sobre a má aplicação dos recursos
nesta área no nosso país. “Cerca de 80% do dinheiro da cultura no Brasil vai
para manutenção da estrutura, como cortinas, cadeiras, mesas, iluminação. É um
absurdo.”
"Vivemos numa ditadura cultural" |
Enquanto
a conversa se desenrola, Beth resolve fazer uma surpresa. Ela e os dois alunos encenam
improvisadamente um trecho do espetáculo que estão produzindo para o Natal Luz
de Gramado: Cadê o Papai Noel?.
Dentro
do castelo do vilão:
Homem
Malvado (Beth):―Então você vai lá, entra e conta 1, 2 e
dobra a direita. Sabe contar até 2?
Criado
(Igor): Sim, sim. 1,2.
Homem
Malvado (Beth):―Tá, tudo bem. Vai, vai, vai!
O
criado sai correndo.
Homem
Malvado (Beth):―Ai meu Deus, perdeu a peça! (sem querer
Igor deixa cair no chão a cabeça do boneco). Não tem problema. (Nesse momento,
os dois fazem uma pausa para recuperar a peça que caiu no chão).
Homem
Malvado (Beth): Mas então Papai Noel (olhando para o
lado, imaginando que o Papai Noel está trancado num canto), voltando à vaca
fria, porque isso é um ensaio aberto, né? Uma obra livre. Você não vai atender
as crianças este ano. Porque, nunca ninguém me ha convidado para uma ceia de
natal...
Na
peça, o Papai Noel é sequestrado por um homem triste que nunca participou de
uma festa de Natal, nem ganhou um abraço, muito menos presentes. O homem
malvado vive em um castelo, é uma espécie de Conde Drácula com sotaque
castelhano. Nesse trecho, ele contracena com o seu criado, um jovem de voz
lânguida e pouco esperto, manipulado e interpretado por Igor. Bharbara
acompanha no violão fazendo a trilha sonora da cena. O espetáculo está previsto
para estrear no dia 03 de novembro.
Da precisão à arte
Nelson fazendo jus ao nome do grupo |
Nelson
está nesse ofício a mais de 20 anos. Nasceu em Porto alegre e com 5 anos
mudou-se para Caxias do Sul. Aos 18 anos, para pagar as contas trabalhava como
Torneiro Mecânico, mas não gostava do ambiente cheio de fofocas e intrigas. Ele
diz que em todos os lugares têm fofoca, “mas no nosso meio, o Teatro de
Bonecos, temos também bastante colaboração e amizade, isso é bem mais
relevante, somos uma confraria mundial”. Depois, passou para o Controle de
Qualidade, gostava de precisão e foi essa característica que transferiu aos
bonecos quando deixou o emprego. Haas sempre gostou de teatro, música e
literatura, e tem muitos amigos nesse meio. Seu pai era músico e também
contribuiu para que ele crescesse inserido neste contexto.
Sua
primeira experiência com teatro de bonecos foi em Caxias, com o grupo “Animando
Bonecos”. Em 1989 mudou-se para Florianópolis. Lá, em 1991, criou com dois
amigos a Produtora “Guernica Arte e Cultura”. Realizaram diversos espetáculos
bem sucedidos no estado, porém, faliram com a chegada do Plano Collor. Em 1992,
retornou para Gramado, fundou o grupo Só Rindo e, a partir daí, dedicou-se
exclusivamente para o teatro, levando a arte dos bonecos por todo o Brasil e
fora do país.
Beth brincando com a marionete de um ônibus, relembrando os tempos de vida corrida quando trabalhava em uma montadora |
Um
reencontro, um amor e o teatro
Beth,
curitibana, criada em Caxias do Sul, se apaixonou pela arte dos bonecos ao
mesmo tempo em que se encantou por Nelson Haas, em 2004. Os dois se conheciam
há algum tempo e se reencontraram na fila da 3ª Semana de Teatro de Bonecos, em
Canela. Ela era executiva da Marcopolo e viajava pelo país vendendo os produtos
da marca, com um ótimo salário e grandes possibilidades de promoção. Porém, sua
vida corrida não lhe permitia ter tempo para... viver. Então, Nelson lhe apresentou o teatro de
bonecos e Beth decidiu largar tudo para ficar mais perto da filha Diana, na
época pouco mais que um bebê, e se aventurar nessa história de amor e arte.
Canela:
uma fábrica de fantasia
A
tradição bonequeira em Canela é bastante desenvolvida. Por isso ganhou um
Festival dedicado a essa arte. O Festival Internacional de Teatro de Bonecos é
um dos mais importantes eventos do gênero na América Latina, com companhias do
mundo todo participando. Neste ano, chegou a sua 25ª edição, após quase ter
sido cancelado por falta de recursos.
Crachás dos diversos espetáculos que o casal participou |
Tiago
Melo, 35, curador do Festival, compara o problema financeiro a uma bola de neve
e explica que o revés começou entre 2007 e 2008, quando uma empresa de
telefonia desistiu de patrocinar o evento na última hora, gerando uma grande
dívida para o Festival. A conta levou cinco anos para ser quitada. “Peguei a
bomba no final”, Melo ri aliviado. Para voltar à grandiosa forma anterior à
crise, a expansão do Festival depende dos projetos de captação de recursos e
patrocínios. O curador pondera que não há um planejamento em longo prazo e que
o trabalho é feito ano a ano de acordo com as verbas que recebem.
Sacola plástica, fita crepe e habilidade |
Pulando dos bastidores para a primeira fila do teatro, Tiago revela seu lado espectador. Sobre a experiência de assistir um espetáculo do Grupo Só Rindo, ele cita a parte que mais lhe chama a atenção: os anjos feitos de sacolinhas plásticas. “Eles são encantadores pela simplicidade”. A admiração destinada aos anjos também se estende ao seu criador. “Para mim, o Nelson Haas é a maior figura do teatro de bonecos na Serra gaúcha. Ele é um entusiasta, acredita no que faz”, exalta Melo.
Anjo de sacolinha plástica: o encanto pela simplicidade |
Quem
faz o Festival de Bonecos é a Fundação Cultural de Canela, com recursos das
leis de incentivo e da prefeitura. Em 2013, o evento atraiu 9 mil pessoas,
menos da metade do seu recorde de público – 25 mil, em 2008. O festival reúne
artistas de diversos países, mobiliza toda a comunidade, com apresentações em
teatros e nas ruas, e é um dos maiores orgulhos de Canela. Tendo esse
conhecimento, a prefeitura e a FCC pretendem realizar em 2014 diversas oficinas
nas escolas e uma mostra de bonecos paralela ao Festival. Também se tem
intenção de trabalhar com os artesãos do município.
Muitas
são as técnicas e materiais para confecção de bonecos. Nelson e Beth fazem
fantoches, marionetes, silhuetas de sombras, bonecos de manipulação direta e
bonecos gigantes. Atualmente, os dois desenham os bonecos antes da criação com
os materiais – que vão de sacolas plásticas a madeira –, mas o titeriteiro também
trabalha com criação livre, pois, “é muito bom de brincar
de Gepeto”.
Os
bonecos de Haas levam cerca de 50 dias para serem feitos, e podem custar de R$
150 a R$ 5 mil. Um gigante, com mais de três metros, pode chegar a R$ 12 mil.
Sem dúvida, o mais importante deles foi “Zico”, um boneco com mais de 20 anos,
que veste um macacão vermelho, representa uma pessoa de pele negra e tem
dentes. Para Nelson, ele foi a porta de entrada para o mundo dos títeres.
“Quando mostrava outro boneco, os bonequeiros me olhavam de canto. Só me
aceitaram na sua ‘máfia’ quando apresentei o Zico. Nunca tinha se visto um boneco
com dentes! A partir de então, passaram a me olhar com respeito e a me ensinar
técnicas mais avançadas.”
"Zico", o responsável por Haas ser aceito na 'máfia' dos titeriteiros |
Dentro
de malas na sala do casal ficam guardados, cuidadosamente, envoltos em panos, diversos
títeres que eles utilizam em cena. Dois gaúchos muito distintos um do outro
chamam a atenção, um deles é “Osvaldir Carlos Serjão”, que mede em torno de um
metro e tem, pelo menos, uns 30 anos. O outro é “Mario Netes”, que possui tanta
sutileza de detalhes quanto Osvaldir, mas com menos da metade do seu tamanho e
uma particularidade: ele calça um pequeno par de botas, com esporas menores
ainda. Seus bonecos de cena, Haas não vende de jeito nenhum, mas já
confeccionou vários por encomenda.
Depois de prontos os bonecos encantam pela riqueza de detalhes |
"Osvaldir Carlos Serjão" |
Assim
como os bonecos, que necessitam das mãos de seus manipuladores para ganhar
vida, Nelson e Beth também precisam da ajuda de outras mãos para realizar seus
trabalhos. Entre elas, estão as de Maria Salete Herrmann, 48 anos, Mari para os
íntimos. A costureira confecciona roupas desde sua adolescência, porém costura
para bonecos há cinco anos, quando começou a criar para o Grupo Só Rindo. O trabalho
com os bonequeiros é colaborativo. “Eles dão umas ideias, eu dou outras. Depois
de pronto, se acho que falta alguma coisa, eu acrescento.” Em certa ocasião, ela
assistiu o resultado de seu trabalho em cena, nas ruas do centro de Canela, sua
cidade natal. “Assisti pouco, mas adorei! Agradeço pelo trabalho que tenho. É
simples, mas muito gratificante”.
A
maioria dos bonecos de apresentação precisa de um “mundo” ao redor para atuar e
contextualizar a história, eis então que surge a artesã Karin Schenck, 41anos. Ela realiza
alguns trabalhos cenográficos para o Só Rindo. Há 15 anos nesta profissão,
Karin acredita que para se manter é necessário bastante criatividade e muito
amor pelo que faz. No momento do espetáculo, o trabalho modifica bastante e
deixa a artesã surpresa. “Nós fazemos cada peça individualmente e com todas
juntas harmonizadas no palco dá uma sensação de ‘Fui eu que fiz isto? ’. É
muito bom!”, exclama.
Um dos cenários confeccionados por Karin |
A
Origem do Teatro de Bonecos
Teatro
de Bonecos, Marionetes, Títeres ou Fantoches é uma forma muito antiga de
expressão artística. Alguns historiadores dizem que surgiu há mais de três mil
anos e que seu uso antecipou o teatro com atores. Afirma-se também que os
bonecos eram utilizados no Egito antigo, em 2.000 a. C. Os registros escritos
mais remotos datam de 422 a. C. e são atribuídos a Xenofonte.
Porém,
segundo Charles Nodier, escritor francês do século XIX e fervoroso admirador
dos títeres, é impossível saber ao certo a origem desta arte. “Pode-se dizer
que o títere mais antigo é a primeira boneca posta nas mãos de uma criança, e
que o primeiro drama nasce do monólogo, melhor dizendo, do diálogo que sustenta
a criança e seu boneco”. O que se sabe ao certo é que o Teatro de Bonecos
exerceu desde seu início um papel significativo na história das civilizações,
para comunicar ideias e animar a sociedade na qual estivesse inserido.
Quadro exposto na oficina dos bonequeiros |
Haas
explica a facilidade da comunicação através de bonecos: “Quando você assiste a
uma peça com atores de carne e osso, por exemplo, com o Tiago Lacerda, já tem
uma ideia de como ele é. Assim que ele entrar no palco, a primeira reação do
espectador será comparar o que imagina dele com o que está vendo. Se ele é mais
alto ou se a voz é diferente do que assistiu na TV. Com o teatro de bonecos
isso não acontece. O ator dá vida ao boneco sem aparecer, é o boneco que está
ali, então ninguém fará essas comparações. O boneco é para todos, da criança ao
velhinho. É impossível não se identificar”.
Beth e Nelson: a coragem de buscar a liberdade |
Assim
como não hesitaram em largar seus empregos estáveis para seguir em busca da
felicidade, o casal não hesita em acolher e ensinar quem quer que esteja
interessado em aprender e perpetuar a arte bonequeira pelo mundo. Ou quem
está a fim apenas de uma boa conversa. Sabe aquele pensamento, “A vida é uma
peça de teatro que não permite ensaios, por isso, cante, chore, dance, ria e
viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos”?
É assim que Nelson Haas e Elisabeth Bado vivem. Rindo, cantando, dançando nos
palcos da vida. Eles e seus bonecos cheios de histórias que nunca acabam.
O casal posando com as repórteres |
*Reportagem escrita em parceria com a repórter (e amiga) Jacqueline Santos, para o suplemento de cultura do jornal Babélia. 2ª edição 2013.
Fotos: Karine Klein e Jacqueline Santos
Fotos: Karine Klein e Jacqueline Santos
As repórteres Jacqueline e Karine |
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